12/08/2023 04:00
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atualizado 12/08/2023 07:13

A captura do sentimento social ?essencial no trabalho de publicitários e marqueteiros, além de orientar a comunicação dos políticos com suas bases eleitorais. Entender onde estão e para onde vão as percepções coletivas do povo não ? contudo, a praia exclusiva dos profissionais da comunicação e da política. Os artistas também espelham os sentimentos de uma época. O artista fala pela tela de um quadro, pela história contada num filme, pela prosa ou pelo verso, assim como na música. Um desses sentimentos coletivos ?o grau de esperança do povo. Consultando esta expressão na internet – que nos informa tudo – encontramos a composição de Carlos Alais e Valito, Esperança do Povo, gravada em 2004, no CD Leitão ?Pururuca, pela resiliente dupla de octogenários paulistas, Lourenço e Lourival. Na música, a penúltima estrofe nos acorda do sonho: “Entra ano e sai ano / Caminhamos s?de r?/ Na melhora do Brasil / J?perdemos nossa f?”
Este parecia ser o sentimento social l?pelo ano de 2004, quando saiu o CD da dupla sertaneja. Desde então, muito pouco parece haver mudado, senão pelos ralos cabelos brancos de uma geração de líderes envelhecidos, mas aferrada ao poder. Enquanto as tecnologias disponíveis evoluíram espantosamente, a gestão dos governos, que deveria refletir as esperanças do povo, permanece estagnada, para ser generoso na avaliação. Também pudera. A gestão do interesse social pela máquina política ?feita por uma pirâmide de poderosos e seus prepostos, como são os ministros das 37 pastas nomeados pelo presidente da República, os secretários de estados e municípios, apontados por governadores e prefeitos, as “Casas de Leis” que aninham os eleitos pelo voto popular e os órgãos de Justiça, que detêm o monopólio da palavra final no País. O imenso aparato dos milhões de pessoas participantes da governança dos interesses da população ?o que chamamos de Estado brasileiro. Interpretando o refrão cantado por Lourenço e Lourival, diria que a máquina do Estado brasileiro ?hoje uma péssima tradutora dos efetivos interesses do povo. O aparelho do Estado nos custa, anualmente, mais de três trilhões de reais – um terço de tudo que produzimos no País – sem qualquer verificação sobre o grau de eficiência desses gastos trilionários, a começar pelos gordos salários pagos a esses “servidores do Estado”, cuja qualidade de trabalho jamais ?conferida ou avaliada em qualquer instância ou órgão público. Não admira, portanto, que a esperança do povo se dissipe nas filas intermináveis do Sisreg (o cruel sistema de acesso ?saúde pública), nas renegociações sucessivas de dívidas impagáveis junto a bancos e financeiras, pela população crucificada por juros, quando não pela bala perdida nos confrontos de sangrenta inutilidade, rotina dos bairros populares e comunidades.
O IPEC (ex-Ibope) publicou, mês passado, mais um resultado nacional de sua pesquisa ICS, o Índice de Confiança Social, levantado ano a ano desde 2009. Na fotografia comparativa, desde a primeira década dos anos 2000, ?nítida a perda de convicção do brasileiro em si mesmo, em seu círculo de amizades e vizinhos, at?na própria família. O ICS ?um índice fácil de entender pois varia como uma nota de escola, de zero a cem. Em zero, a confiança medida ?nenhuma. Em cem, ?“muita” ou absoluta confiança. Na faixa de 60, apenas “alguma” confiança e, na faixa de 30, “quase nenhuma” confiança. Consultando a pesquisa ICS em julho de 2023, e olhando para trás, desde 2009, h?resultados surpreendentes. A confiança do brasileiro na própria família, antes na faixa de 90 (confiança quase absoluta) se deteriorou at?81 em 2023. E a confiança nos outros brasileiros em geral vem caindo de 60 (“alguma” confiança) para 53 este ano. Entre as instituições de governo, o brasileiro ainda prefere apelar para os bombeiros (ICS de 87), para a Polícia Federal (ICS de 70) ou entrar numa igreja e rezar (ICS 70). A estrutura política do País continua mal e andando de lado, embora j?tenha estado pior, pela medida do ICS, quando passamos pelo vale da morte da grande recessão de 2014 a 2017. O governo federal e a figura do presidente da República (este, antes apelidado de “a esperança do povo”) mal conseguem um ICS na faixa de 50, ou seja, uma confiança desconfiada, enquanto o Congresso e os partidos políticos merecem não mais do que índices de 40 e 34, respectivamente, portanto quase nenhuma confiança.
Na perspectiva do tempo e no confronto com as situações de momento, a interessante pesquisa do IPEC sobre “confiança” ainda nos daria mais do que um dedo de prosa. Mas o recado geral, na mirada retrospectiva de mais de uma década, indica que a esperança do povo vai morrendo com a perda de confiança do brasileiro em relação a si mesmo, a seu círculo mais próximo, às autoridades e aos serviços gerais do País em que vive. A impressão de perda geral de confiança ?clara quando vemos o Congresso Nacional mal debruçado sobre apenas uma reforma, a tributária, embora at?agora jejuno de dados básicos e estudos oficiais para se orientar como reformar os impostos, enquanto o governo caminha para o final do primeiro de seus quatro anos de mandato, ainda sem projeto definido, sem teto de gastos e sem qualquer regra de controle de eficiência em suas ações e políticas. O exemplo que vem de cima não ?nada bom. E não ?de hoje, nem somente dos atuais gestores. Resta apelar ao conselho de Lourenço e Lourival, que assim finalizam sua Esperança do Povo: “Ninguém consegue tirar / O país dessa mar?/ A esperança do povo / ?o Homem de Nazar?rdquo;.